A importância dos recursos lúdicos e criativos no atendimento de pessoas com deficiência
Por Kalyane Vicente - Psicóloga - APAE Monte Sião
Os atendimentos em psicologia voltados as pessoas com deficiência muitas vezes saem do enquadre clínico “comum”, ou seja, é necessário que o profissional construa seu modo de atuação e prática, conforme as possibilidades do paciente. Deste modo, é importante que o processo psicoterapêutico seja construído em conjunto: o saber do profissional e o saber do paciente sobre si mesmo. É preciso estar sensível e atento ao modo de comunicação do paciente, que em muitos casos ocorre por meio da comunicação não verbal. Nestes casos em especial, os recursos lúdicos e artísticos se tornam ferramentas de grande valia para o processo.
Dando continuidade à temática, relatarei a seguir o caso de um paciente que atendo nesta Instituição, procurando evidenciar a construção e evolução dos recursos psicológicos que foram observados através de suas produções criativas-artísticas e através de suas interações relacionais neste local.
João (nome fictício) tem 40 anos, apresenta diagnostico de Transtorno do Espectro Autista com uma comunicação verbal bastante reduzida, portanto se fez necessário a utilização de outros recursos para a construção de vínculo. Inicialmente, foi observado que o paciente se relacionava através dos ditos “comportamentos de oposição” com postura desafiadora e agressiva.
Durante os primeiros atendimentos, o paciente não demonstrava interesse pelos jogos, brincadeiras e outros objetos lúdicos, e quando sugerido, recusava, jogando-os para longe. Em algumas sessões, ao chegar na sala de atendimento o paciente derrubava o que estava em cima da mesa e no caminho até o local, costumava mexer em diversos itens da instituição como por exemplo o ponto de horário dos funcionários, as portas dos departamentos, as torneiras dos filtros de água e etc, como forma de desafiar e/ou provocar os funcionários, que de forma imediata reforçavam as regras (os limites) da Instituição. No decorrer de algumas sessões, o paciente apresentou interesse por colorir e através desse recurso foi sendo aprofundado o vínculo terapêutico. Inicialmente, o paciente ultrapassava o limite da folha e acabava pintando a mesa. Foi observado que, este aspecto, tratava-se de uma baixa internalização dos limites internos e externos, subjetivos e concretos. Foram realizadas tentativas de pintar junto com ele e de sugerir as cores, mas ele sempre recusava (a interação com o outro).
Gradativamente o paciente começou a colorir dentro do espaço da folha de sulfite, fazendo sempre o mesmo movimento traçado para pintar e passou a aceitar minha participação em sua produção, com sugestões e breves conversas. Com algum tempo de atendimento o paciente além de ter internalizado o limite da folha, passou a colorir de outros modos e presentear as pessoas com suas produções, passou também a compreender os limites (regras) da instituição e das relações, como por exemplo, não precisar ser agressivo para se relacionar e se comunicar.
É importante ressaltar que a evolução do paciente decorreu principalmente pela construção, discussão e articulação do caso não somente com a equipe multidisciplinar, mas também com os demais integrantes da instituição.
Atualmente, o paciente aceita realizar outras atividades durante a sessão, comunicando seu desejo em se expressar através dos desenhos e da pintura. No momento em que está produzindo, é possível observar seus movimentos de elaboração interna e a ampliação de seus recursos psicológicos.
Este caso exemplifica a importância da utilização dos recursos criativos, artísticos e lúdicos, pois sem eles não seria possível construir com este paciente um novo modo de se relacionar, indo para além da recusa, da oposição e do reforço contínuo das regras e limites.
Atualmente o paciente comunica os seus desejos, seus afetos, suas dificuldades, suas queixas e demandas, seja por comunicação verbal ou não verbal e considero de suma importância a atenção dos profissionais neste aspecto e a abertura da atuação clínica, para além do enquadre ortodoxo, utilizando os recursos que forem necessários para que o tratamento e acompanhamento seja possível.